GÊNEROS DA CANTORIA, POR MANUEL DIÉGUES JR.
GÊNEROS DA CANTORIA, POR MANUEL DIÉGUES JR.
Gêneros da cantoria
Manuel Diegues Junior
A cantoria se faz, geralmente, de acordo com um certo processo temático, inicia-se com a apresentação dos cantadores, quando alguém narra suas proezas e as suas habilidades. Depois fazem os cantadores as saudações aos presentes, louvando os méritos de uns, referindo-se a atividade de outros etc. É a chamada de louvação, dirigida principalmente aos donos da casa onde se faz a cantoria ou aos promotores da reunião.
Prossegue a cantoria com a variação de assuntos: coisas do momento surgem nos repentes, idéias sobre mitologia, geografia, gramática etc., aparecem nas obras feitas. O fim da cantoria é a despedida: encerra-se quando não há vencedores ou vencidos, ou quando, sentindo-se derrotado, um dos cantadores deixa o terreno. Nas diversas fases da cantoria usam-se os vários gêneros ou "regras" da poesia popular.
Chamam-se regras, as espécies ou formas poéticas usadas pelo cantador. São gêneros da poesia popular. Como na poesia erudita há o soneto, a redondilha, o rondó, a balada etc., na poética popular conhecem-se o quadrão, galope, o martelo etc. Os gêneros mais freqüentes, além destes, são a sextilha, a décima, o gabinete, o martelo agalopado, o mourão ou trocado, o galope à beira-mar. Já não são freqüentes ou estão fora de uso, a ligeira, os dez pés em quadrão, o seis por nove.
"Obra" é a denominação dada ao conjunto de estrofes de um cantador; se todas as estrofes são sextilhas chama-se obra de seis pés, se de sete versos, obra de sete pés, e assim por diante. A estrofe é chamada "verso", e ao verso propriamente dito chama-se "linha" ou "pé".
Vejamos alguns desses gênero poéticos, a começar pela "sextilha" forma mais comumente usada na cantoria. É um dos gêneros tradicionais e consta de uma estrofe (ou verso) de seis versos (linhas ou pés), quase sempre em sete sílabas. Nos seguintes versos de Joaquim Vitorino, com os quais se apresentou numa cantoria, temos um exemplo de sextilha:
Tenho enorme inteligência
Poeta não me dá vaia
Sou vento rumorejando
Nos coqueiros de uma praia
Sou mesmo, que Rui Barbosa
Na conferência de Haia.
"Quadrão" é a estrofe de oito linhas ou versos, de sete sílabas, terminando sempre com a palavra "quadrão". As rimas são do primeiro, segundo e terceiros versos, do quarto com o oitavo e do quinto, sexto e sétimo. Nas Alagoas denomina-se ainda ao "quadrão" de "oitavo arrebatido". Um exemplo desse gênero encontramos em Lourival Bandeira, cantador alagoano, que ora se encontra no Rio de Janeiro, encantando os ouvintes com seus repentes; é dele o seguinte quadrão:
Cavalo fica pra sela
Batente para janela
Fogão ficou pra panela
Cangaceiro pro sertão
Cadeira ficou pra réu
Cabeça pra chapéu,
Noiva ficou para o véu.
E eu pra cantar quadrão.
Alguns autores dão como sinônimos as "regras" ou gêneros poéticos "gabinete" e "martelo agalopado". Encontrei, entretanto entre os cantadores a afirmativa de que são os gêneros diferentes: pelo menos foi informação que colhi com este notável Domingos Fonseca que está fazendo sucesso no Rio de Janeiro.
Ao "gabinete" alguns autores denominam "parcela" e outros chamam "carretia", "parcela" é a estrofe com versos ou linhas, de cinco sílabas. Às vezes usa-se em oito versos. Aliás, é a forma clássica da redondilha em língua portuguesa; usou-a Camões, em dez versos, nas Endechas a uma cativa; e Gonçalves Dias, em oito versos, na Canção do Tamoio.
Vejamos uma parcela, conforme se encontra reproduzido de uma peleja entre Raimundo Pelado e Manuel Campina. É do primeiro esta parcela:
Eu como cantor
Não tenho inimigo
E só canto contigo
Pra fazer favor
Mas tenho rancor
De ver tua raça
Porque onde passa
E só pabulando
E o povo mangando
De tua desgraça.
Outros cantadores fazem distinção entre "parcela" e o "gabinete". Ainda recentemente, Fogo Cerrado, nome de guerra do cantador cearense Francisco Cavalcanti, me informava que o "gabinete" difere da "parcela"; nele rimam entre si as linhas, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e a 10 e a 8, 9 são isoladas. O número de sílabas varia nos versos. Deu-me aquele cantador o seguinte exemplo de "gabinete".
Tirei um cartão pra embarcar no trem
Sem cartão ninguém vai, sem cartão ninguém vem.
Tanto vem como vai, tanto vai como vem,
Ninguém vai, ninguém vem,
Quem não tem cartão não embarca no trem
Quem tiver inveja faça assim também.
Gazogeno e carbureto
Quem não canta gabinete
Não é cantor pra ninguém.
O "mourão", também conhecido por "trocado", está muito usual em cantorias. Os cantadores intercalam versos numa estrofe de sete pés ou linhas. O primeiro canta dois versos, o segundo outros dois, o primeiro voltando a cantar, diz três versos: é assim vão se alternando os cantadores.
Exemplo de um mourão tirado de uma cantoria entre Agostinho Lopes e José Bernardino:
A - Bernardino, companheiro
Vamos cantar um mourão...
B - Satisfazendo o desejo
Do pessoal do salão!
A - Faça bom que eu darei preço...
E no mourão que conheço
Quem é cantador ou não!
B - Levante sua questão...
Pode confiar em mim!
A - O princípio não é nada!
A choradeira é no fim...
B - O colega se enganou...
Pois se soubesse eu quem sou.
Você não falava assim.
Coutinho Filho diz que antigamente o "mourão" era cantado em sextilhas revezando-se os cantadores a cada dois versos. Um exemplo encontra-se neste trecho desse desafio entre Catingueira e Romano. Ao citá-lo chamo a atenção do leitor para a ironia fina do negro Inácio ao responder ao seu adversário:
I - Seu Romano, estão dizendo
Que nós não cantamos bem!
R - Pra cantar igual a nós
Aqui não vejo ninguém!
I - E o diabo que disse isso
É o pior que aqui tem!
O "mourão" é um admirável jogo de rimas, em que se torna necessário destreza mental do cantor: a este é indispensável igualmente muita presença de espírito e prática no versejar, dada a rapidez com que se alternam os versos.
(Diegues Júnior, Manuel. "Gêneros da cantoria". Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 08 de outubro de 1950)
Disponível em: https://www.flogao.com.br/arievaldocordel/56343056. Acesso em: 17/02/2019.
FONTE: www.jangadabrasil.com.br
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